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domingo, 9 de setembro de 2012

Médicos que não querem conversa


TEXTO DA FOLHA DE HOJE. 

LUIZ ROBERTO LONDRES, 71, médico e mestre em filosofia pela PUC-RJ,
Médicos que não querem conversa
A anamnese, conversa inicial com o paciente, está em desuso, mesmo permitindo até 90% dos diagnósticos. Na meu tempo, os exames eram para confirmação
Durante minha formação, tive o privilégio de conviver com Danilo Perestrello, autor de "A Medicina da Pessoa" (Atheneu). Vinham ao consultório não só pessoas doentes, mas pessoas que se sentiam doentes.
Um dia, em conversa com meu pai, cardiologista cujos passos segui, comentei que metade dos meus atendimentos eram de pessoas sem doença física. Ele retrucou: "Só metade? Você deve estar adoecendo alguns".
Em inúmeros casos, a simples conversa resolvia a "doença". Muitos saíam da consulta sem solicitação de exames ou receitas. Em nova consulta, estavam totalmente "curados".
Na medicina atual, aos poucos a pessoa foi reduzida à condição de doente. Não mais interessava sua vida, história, personalidade ou situação psicológica e social, apenas os sintomas no momento da consulta. A anamnese, entrevista inicial com o paciente, passou a se limitar aos dados da doença apresentada. A alteração biológica passa a ser tudo.
Na medicina atual, não se leva em conta características específicas de cada paciente, que podem determinar se o tratamento indicado deve ser administrado. Um exemplo gritante é aplicação de cirurgias ou tratamentos agressivos, tantas vezes extremamente dispendiosos, a idosos que provavelmente faleceriam de outras causas antes que a doença em questão levasse ao óbito.
Médicos se sentem oprimidos em relação ao tempo que podem dispensar a uma consulta e perderam o espírito crítico em relação ao valor da anamnese -que, segundo Howard Barrows, da Universidade de Southern Illinois, dá ao bom médico 90% de chance de diagnóstico certo.
Deixamos de lado os princípios médicos para atender volume. Recém-formado, fui colocado em um ambulatório com uma lista de 40 pacientes para serem atendidos em quatro horas. Atendi como deveria e, ao final do meu tempo, havia atendido por volta de 15. No dia seguinte, fui chamado à diretoria do hospital, que questionava minha conduta. Médicos não têm de atender filas, têm de atender pacientes.
Na nossa época de estudantes, aprendíamos que exames serviam para confirmar ou não o diagnóstico e quantificar alguns parâmetros. Hoje, isso foi esquecido. Além disso, médicos se fiam em laudos de colegas que não conhecem, sem avaliar o grau de sua capacidade médica.
Com esse reducionismo, o médico é cada vez mais dispensável, podendo ser substituído por computadores.

LUIZ ROBERTO LONDRES, 71, médico e mestre em filosofia pela PUC-RJ, é presidente da Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

os diferentes olhares para o mesmo significante.


Artigo do professor Sírio Possenti, da Unicamp, sobre os diferentes olhares para o mesmo significante.


Mulher com bandeira palestina passa por soldados israelenses. Conceito de "terrorista" na região é manipulado


Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Mas podemos, também, ver menos metaforicamente o discurso sociopolítico como um discurso que elabora dicionários, nos quais as fórmulas são construídas como novas entradas ou como novos sentidos. Bernard Gardin, a propósito de uma análise dos discursos produzidos nos anos 1970 no debate sobre o "programa comum" da esquerda, propunha considerar um debate desse tipo como "o estabelecimento de um dicionário". De fato, diz Gardin, trata-se, nesse debate, "para cada grupo: (1) de impor seus próprios significados aos significantes que fazem parte do vocabulário político comum: liberdade, igualdade, democracia, justiça... (esses termos que fazem crer que todos os grupos dizem a mesma coisa) e de combater a mesma tentativa por parte do adversário: recusar seu emprego dessas unidades; (2) de dar a verdadeira significação dos termos típicos do adversário, denunciando os significados ocultos: de impedir, portanto, que esses signos do adversário se instalem na língua; (3) de impor seus próprios signos linguísticos: significante e significado: participação, programa comum... ... Cada grupo político constrói, então, dois dicionários: o seu, que ele quer ver transformado em dicionário da língua, e o do adversário, que ele quer ver desaparecer." A metáfora subsiste na pena de Bonnafous e Tournier (1995: 68) quando escrevem que "o homem no poder brinca permanentemente de dicionário". Esse "jogo" não é de fato um jogo. E raramente é um jogo de soma nula. Um homem no poder, ao falar, carrega com ele no mundo real os outros homens, com as consequências de seus erros e de suas clarividências, de suas mentiras e de suas verdades. A metáfora do dicionário tem a vantagem de sublinhar que a polêmica de que a fórmula é objeto se opera, em larga medida, num nível metadiscursivo, nível ao qual daremos uma atenção especial.

O trecho acima é do livro de Alice Krieg-Planque (A noção de "fórmula" em análise do discurso; quadro teórico e metodológico. São Paulo: Parábola), que Luciana Salgado e eu traduzimos nas férias (!) de verão, há um ano. Tem, a meu ver, uma utilidade enorme, em termos metodológicos, para quem quer fazer análises de discursos, especialmente hoje, com os sistemas de busca, cada vez mais sofisticados - e que eu preciso aprender a usar.

Mas, além da utilidade metodológica, o livro contém teoria, expressa posições, cita outros autores, cujos textos vão, ora mais, ora menos, na mesma direção do da autora. A passagem acima transcrita é exemplar, a meu ver, de uma posição de enorme interesse - e de grande poder heurístico (isto é, que permite gerar conhecimentos) quando se trata da língua, em especial de seu funcionamento ligado ao poder.

Qualquer pessoa pode verificar que os discursos (políticos, mas também outros ) elaboram dicionários, ou seja, definem sentidos para palavras ou expressões. O que é uma economia "saudável", por exemplo, depende da escola a que o economista se filia (sem inflação, sem desemprego, com crescimento, tecnologicamente avançada, não exportadora de commodities etc.). Ou: o que é terrorismo? Em geral, é algum tipo de violência (e o que é violência?) cometida (e o que é cometer?) por um adversário.

Do livro A linguagem do império (de Domenico Losurdo, Rio: Boitempo): "Se o garoto palestino que protesta contra a ocupação jogando pedras é "terrorista", devemos considerar campeão da luta contra o terrorismo o soldado israelense que o mata a tiros? Não se trata de um exemplo imaginário. Uma advogada israelense, empenhada em defender os palestinos, conta sobre um 'menino de dez anos morto perto de um checkpoint à saída de Jerusalém por um soldado contra o qual tinha apenas jogado uma pedra'".

Os exemplos podem ser multiplicados. Jovens que cometem algum desatino (?) são em seguida designados como bandidos ou como desajustados ou violentos. Por que a diferença? Em geral, ela tem a ver com a cor da pele e/ou com a renda familiar.

Podemos ler jornais para ver que tipo de dicionários tentam fazer. E podemos analisar dicionários para descobrir de quais discursos provieram (por que determinada confissão é religião e outra é seita?). Que palavras registram e como as definem? Que palavras (ou flexões) excluem?

Os dicionários são um pouco como os catálogos de plantas ou de animais. Só que, em vez de definir uma planta ou animal como botânico ou zoólogo, o dicionarista às vezes a define como paisagista ou como gourmet...

E o que dizer dos debates sobre presidenta, quando não foram só burrice? Eram parte de uma luta para fazer um pedaço do dicionário do português.



Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.